Eduardo Ferro Rodrigues
Presidente da Assembleia da República

No quadro das Comemorações do Bicentenário do Constitucionalismo Português, a Assembleia da República tem vindo a desenvolver um vasto conjunto de iniciativas exercícios de memória simbólica e de reflexão cívica, de aproximação à nossa diversidade geracional e territorial, e, também, de promoção do desenvolvimento científico e historiográfico, com o objetivo de contribuir para a divulgação da atualidade dos ideais liberais, republicanos e democráticos quando estamos a caminho dos 200 anos da Revolução Liberal e do nascimento do Constitucionalismo Português.

No programa destas Comemorações, encontra lugar de destaque a exposição "O Direito Sobre Si Mesmo", fruto de uma intensa colaboração entre o Parlamento e diversas instituições e especialistas das mais variadas áreas do conhecimento, que uniram esforços para assinalar uma das datas mais marcantes da nossa história coletiva: a abolição da escravatura.

Cento e cinquenta anos depois, e precisamente no local onde tudo aconteceu, a aprovação do Decreto de 25 de fevereiro de 1869 é evocada não apenas como um ato legislativo simbólico, mas como um passo de um processo mais vasto e complexo, com muitos avanços e recuos, que permitiu que tantos homens e tantas mulheres passas sem a poder dispor de si mesmos.

Esta exposição e o catálogo que a acompanha pretendem contribuir precisamente para uma leitura mais informada deste período da nossa história, para um maior conhecimento dos seus principais protagonistas, e, naturalmente, para uma evocação contemporânea das raízes da abolição da escravatura, à luz dos valores da liberdade, da igualdade e da fraternidade de que somos herdeiros.

Introdução

A exposição “O direito sobre si mesmo: 150 anos da abolição da escravatura no império português” procura contribuir para uma reapreciação da abolição da escravidão em Portugal, tendo como pretexto o decreto de 25 de fevereiro de 1869, integrando-o em dinâmicas históricas que o precedem e lhe sobrevieram. A abolição da escravidão não foi um evento, mas sim um processo atribulado e ambivalente, a muitos níveis e em muitos sentidos. A própria citação que inspira o título desta exposição implica essa ambivalência. O “direito do homem sobre si mesmo” foi invocado pelo deputado Martens Ferrão na mesma intervenção em que manifestou o seu apoio a uma cláusula que garantia que os filhos de escravos que nascessem livres trabalhariam para os donos dos seus progenitores por vinte anos.

É interrogar as particularidades de uma dinâmica histórica que tem 1836 — ano de um dos mais importantes relatórios sobre o projeto dos “novos brasis em África”, assinado por um dos mais notáveis protagonistas desta história, o marquês de Sá da Bandeira — como data marcante, mas também pensar os impactos mais duradouros de um processo multissecular, ainda que historicamente situado e contingente, que se alicerçou na diferenciação e hierarquização de grupos humanos em função de supostos índices “raciais” ou “civilizacionais”. É ainda questionar o modo como, no presente, a abolição, em particular, e o passado imperial, em geral, são ou não invocados, pensados e debatidos, com rigor histórico e espírito crítico e cívico, nos discursos políticos, nas reflexões académicas, no espaço público, nas práticas artísticas ou nos manuais escolares. Com história e com memória, sem as confundir.

Comissariado

Comissário Científico

Miguel Bandeira Jerónimo é Investigador Sénior do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, Portugal. É Professor no programa de doutoramento em Patrimónios de Influência Portuguesa (III/CES) da Universidade de Coimbra (desde 2012), do qual é co-coordenador científico (desde 2016). É ainda Professor Assistente da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade Nova de Lisboa. Foi Professor Visitante na Universidade de Brown (Providence, EUA, 2001 e 2012) e Hélio and Amélia Pedroso/Luso-American Foundation Endowed Chair in Portuguese Studies na Universidade de Massachusetts Dartmouth (EUA, 2019). Entre 2009 e 2015 foi investigador do Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa. Os seus interesses de pesquisa centram-se na História Global e Comparada do Imperialismo e do Colonialismo (Sécs. XVIII-XX). Em 2010, publicou Livros Brancos, Almas Negras: A "Missão Civilizadora" do Colonialismo Português, c. 1870-1930. Em 2012, publicou A Diplomacia do Imperialismo. Política e Religião na Partilha de África (1820-1890) e editou O Império Colonial em Questão. Em 2014 co-editou Portugal e o fim do Colonialismo. Dimensões internacionais e, em 2015, The ends of European colonial empires: Cases and comparisons e Os passados do presente. Em 2015 publicou ainda The "Civilizing Mission" of Portuguese Colonialism (c.1870-1930). Em 2017, co-editou Internationalism, imperialism and the formation of the contemporary world. É co-editor das colecções História e Sociedade (Edições 70) e The Portuguese Speaking World (Sussex Academic Press).

Vice-comissário científico

José Pedro Monteiro é Investigador Júnior no Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra desde 2019. Doutorou-se em História (2017), pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, ao abrigo do Programa Inter-Universitário de Doutoramento em História (PIUDHist). Foi ainda Junior Visiting Fellow na Brown University (Providence, EUA), em 2012, e no Graduate Institute (Genebra, suiça), em 2015. Tem vindo a trabalhar as histórias cruzadas do internacionalismo e do imperialismo no século XX, explorando temas como os do trabalho e da cidadania em contexto colonial. Encontra-se a desenvolver um projecto de investigação individual intitulado Rights of Belonging, Rules of Exclusion: the Politics of Citizenship in the Portuguese Colonial Empire (1945-1975), financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (CEECIND/01714/2017). Entre outras publicações, co-editou Os Passados Do Presente (2015) e Internationalism, Imperialism and the Formation of the Contemporary World (2017). Em 2018, publicou Portugal e a Questão do Trabalho Forçado: um Império sob Escrutínio (1944-1962).

Ficha técnica

O DIREITO SOBRE SI MESMO

150 anos da abolição da escravatura no império português

 

Átrio Principal do Palácio de São Bento

4 de julho de 2019 a 31 de janeiro de 2020

 

Assembleia da República

Presidente – Eduardo Ferro Rodrigues

Secretário-Geral – Albino de Azevedo Soares

Adjunto do Secretário-Geral – José Manuel Araújo

 

Coordenação científica

Miguel Bandeira Jerónimo e José Pedro Monteiro

 

Coordenação geral

Rui Costa – Diretor de Informação e Cultura

 

Comissão executiva

Assembleia da República

(Arquivo Histórico Parlamentar / Divisão de Edições / Divisão Museológica e para a Cidadania)

Direção-Geral do Livro, dos Arquivos e das Bibliotecas

(Arquivo Histórico Ultramarino / Arquivo Nacional da Torre do Tombo)

 

Fontes

Arquivo Histórico Diplomático

Arquivo Histórico Parlamentar

Arquivo Histórico Ultramarino

Arquivo Nacional da Torre do Tombo

Biblioteca Nacional de Portugal

Biblioteca Passos Manuel

Fundação Calouste Gulbenkian

 

Projeto museográfico

Origem Arquitectos – Mónica Cruz

 

Apoio à montagem

Origem Arquitectos – Maria Pereira do Valle

 

Projeto gráfico

FBA. – Beatriz Correia

 

Animação Digital

FBA. – Ana Simões

Estruturas, impressão e montagem

Unveil – Exhibitions Museums Public Places

 

Núcleo áudio

Gabinete de Comunicação sob direção de José Jorge Duarte

 

Instalação

Proaudio

 

Eletricidade

Sotécnica

 

Divulgação

Gabinete de Comunicação

 

Serviços Educativos

Divisão Museológica e para a Cidadania

 

A Assembleia da República agradece às seguintes pessoas e entidades a cedência de imagens:

Bibliothèque Nationale de France

Cátia Carvalho, Biblioteca Mário Sottomayor Cardia (Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa)

Clelia Bettini, Instituto Italiano de Cultura, Lisboa

Cristina Leite, Gabinete de Estudos Olisiponenses

Délio Jasse

Ernst Schade

Fundação Mário Soares

Instituto Moreira Salles

João Moreira, Escola Antiga

João Pedro Vieira, Museu do Dinheiro, Banco de Portugal

José Marques da Silva, Parques de Sintra

Kiluanji Kia Henda

Major-General João Jorge Botelho Vieira Borges, Academia Militar

Manuel Laranjeira Rodrigues de Areia

Margarida Lages, Arquivo Histórico Diplomático

Maria de Lurdes Sales Baptista, Museu de Lisboa-Palácio Pimenta

National Maritime Museum, Greenwich

Peter Harrington, Brown University Library

Rui Gaudêncio e Daniel Rocha, Público

Publicações

Fruto de uma colaboração entre instituições e especialistas em várias áreas, a exposição “O direito sobre si mesmo”: 150 anos da abolição da escravatura no império português é acompanhada pela publicação deste catálogo. Procura-se que estes dois elementos, acessíveis a um público que não meramente o académico ou especializado, contribuam para um melhor conhecimento desta dimensão incontornável da história portuguesa e das “nações” que sucederam ao desmembramento das distintas formações imperiais portuguesas, alimentando um debate informado e crítico no presente. Mas ambos resultam, também, da vontade de reapreciar a importância do processo de abolição da escravidão no império português, tendo como pretexto o decreto lei de 25 de fevereiro de 1869, integrando-o em dinâmicas históricas que o precedem e lhe sucedem. Este decreto ordenava a extinção do estado de escravidão em toda a monarquia.

Os escravos deviam passar ao estado de “libertos”, conservando-se nessa condição legal, em conformidade com as disposições estabelecidas no decreto de 14 de dezembro 1854. A figura jurídica dos “libertos” deveria vigorar durante 20 anos, de acordo com o estabelecido pelo decreto de 29 de abril de 1858. Prevista para 1878, a extinção total, mas formal, da escravidão ocorreu a 29 de abril de 1875. Este decreto acabava com a condição servil dos libertos nas províncias ultramarinas sendo que, todavia, determinava a sua permanência sob tutela públi-ca até 21 de novembro de 1878.

Este é um resumo, possível e sintético, de uma história marcada por múltiplas datas e diversos constrangimentos, que se estenderam ao longo de grande parte de Oitocentos. Para deles dar nota, a exposição e o catálogo foram estruturados em torno de um conjunto de ideias fundamentais. Como a mais relevante e crítica literatura recomenda, ambos procuraram dar conta de o facto da abolição da escravidão não ter sido um evento, mas sim um processo, dinâmico e complexo, atribulado e ambivalente, a muitos níveis e em muitos sentidos. Envolveu inúmeros atores históricos, em diversas geografias, com diferentes capacidades de intervenção, interagindo em intricadas relações de po-der, com distintas motivações e visando resultados díspares (incluindo a inércia, o statu quo ou a aparente mudança para preservar os bene-fícios do existente). Uma data ou um período restrito e fixado no tempo, ainda por cima associados a um gesto de natureza essencialmente político-legislativa, não permitem sequer começar a interrogar esta rica realidade histórica. Não se trata de desvalorizar dinâmicas ou deci-sões políticas e jurídicas, nem de depreciar a relevância de um evento histórico singular. As primeiras foram decisivas, o segundo, funda-mental numa longa marcha de mudança social e política, em muitos sentidos ainda por cumprir. Trata-se, sim, de lhes dar o devido trata-mento e importância: contextualizando-os, precisando-lhes o sentido e apurando-lhes as consequências, convocando outras cronologias, configurações, protagonistas, argumentários, interesses, relações e níveis de análise, tudo sem os querer perder de vista. No fundo, testar o seu amplo significado. 1869 não faz sentido sem 1761 e 1773 (data do alvará que proíbe o transporte de escravos para o Reino de Portugal e do que extingue gradualmente a escravidão no Portugal metropolitano) ou 1836 (ano de um dos mais importantes relatórios sobre o pro-jeto dos “novos brasis em África”, assinado por um dos mais notáveis protagonistas desta história, o marquês de Sá da Bandeira).

Ou sem 1875 (data da chamada “memorável lei libertadora”, a de 29 de abril) ou 1899 (ano do Regulamento do Trabalho dos Indígenas, assinado por António Enes, que legalizava o trabalho forçado com uma ampla latitude). Quem sabe, até, sem 1962 (data do novo Código do Trabalho Rural que abolia legalmente o trabalho forçado) e 1975 (o ano de várias independências). Ou, ainda, sem o dia de hoje. Pois 1869 é, também, o modo como, no presente, é ou não invocado, pensado, consubstanciado nos discursos políticos, nas práticas artísticas ou nos livros de escola. E não apenas 1869, o pretexto desta iniciativa coletiva, mas os impactos mais duradouros de um processo multissecular, ainda que historicamente situado e contingente, que se alicerçou na diferenciação e hierarquização de grupos humanos em função de su-postos índices raciais ou “civilizacionais”.

Entre muitas outras, todas estas datas reenviam para momentos de decisão política, determinação jurídica e associada luta social e econó-mica centrados no problema da vigência, mitigada ou não, ou, mais frequentemente, da supressão do “direito do homem sobre si mesmo”, expressão usada por Martens Ferrão na Câmara dos Deputados, em 7 de março de 1856, quando ainda se estava longe da abolição e os apologistas desta última eram escassos.

Consequentemente, apesar de a exposição e de o respetivo catálogo não pretenderem tratar exaustivamente da intricadíssima história do tráfico de escravos e da escravatura, estes não deixam de ser invocados, na história e na memória. Seria difícil pensar a abolição da escravi-dão sem refletir, por exemplo, no sistema triangular de tráfico humano (disposição geométrica que se afirmou com maior ou menor precisão em função do momento histórico) ou nas dinâmicas locais dos principais espaços sociais que o compuseram e, aquando do seu fim, se adap-taram. Ou sem pensar no abolicionismo em profunda relação com processos mais amplos de transformação social de Oitocentos, propicia-dos pela industrialização e pelo capitalismo, e com várias dinâmicas globalizantes, das migrações em massa à revolução comunicacional. Por outro lado, apesar de não pretenderem abarcar os processos abolicionistas fora das geografias do império português, estes dois elementos, a exposição e o catálogo, não deixam de sinalizar a importância de um olhar comparativo, transnacional, internacional e, até, global. Da mesma forma, a história da abolição da escravidão propriamente dita no império português não pode ignorar as variadas modalidades coer-civas de trabalho que lhe sobreviveram, muitas significativamente intituladas de “condições análogas à escravatura”.

A exposição e o catálogo procuram também apontar para locais muito diversos onde o processo abolicionista foi sendo tecido: dos corre-dores e da sala da Câmara dos Deputados do Parlamento aos areópagos internacionais, da pena do viajante aos autos da polícia em território colonial, da letra da lei à sua obstinada transgressão ou estratégico desvirtuamento, da esgrima política à imaginação da história e da memó-ria, passando por elaborações religiosas e preciosismos legais. E, ainda, confusões terminológicas. Tudo em múltiplas temporalidades e geo-grafias, com diversos intervenientes, de voz própria ou por meio de publicistas de causas ou interesses alheios, inseridos em contextos marcados pelo dinamismo das formações económicas e políticas que lhes estavam associados ou onde interagiam.

Tal como a exposição associada, este catálogo não pretende esgotar a história do abolicionismo em Portugal e no(s) seu(s) império(s). Nem o passado nem o presente dessa história. Longe disso. Procurou antes sinalizar a centralidade de ambos no nosso país, iluminando alguns dos principais protagonistas, nacionais, estrangeiros, e das próprias populações visadas, alguns dos principais debates e decisões, dinâmicas e (in)consequências, contando, para isso, com o contributo de um leque de especialistas que trabalha algumas das dimensões mais relevantes desta longa história, que, como sugerido acima, reverbera no presente de modos ora manifestos ora sub-reptícios. Que a sua leitura seja, sempre, o início de uma conversa, a mais informada possível, não o seu fim.

Folheto da exposição

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